14 de jul. de 2009

Foto: Arquivo Nirez


Quando o diabo morou em Fortaleza

Certa vez, pedi ao poeta, historiador e membro da Academia Cearense e Letras, Juarez Leitão que escrevesse para a Singular um texto sobre figuras excêntricas que povoaram o cotidiano de Fortaleza. Dono de uma fluência imaginativa de narrador de causos, o poeta foi rápido na ação de pesquisador da memória fortalezense. Pois não que o danado descobriu que o "diabo" havia morado na Capital cearense.


Eis o seu relato:


Nas minhas entrevistas com as pessoas de idade, tentando reconstituir a memória oral da cidade, encontrei em três ou quatro ocasiões, referências a um homem que era o diabo. Essas alusões partiam de octogenários, geralmente mulheres, que antecediam seus relatos com um “meu pai contava” ou “minha mãe falava”.

Eram lembranças terríveis, vindas da infância, sobre um homem estranho que aparecera em Fortaleza, todo de preto, com seis dedos em cada mão, que tinha parte com o diabo. Essa assustadora figura misturava-se a manjaléus e bichos-papões no afã terrorista das mães e babás de outrora para fazerem as crianças dormir mais cedo ou para que comessem os mingaus e papinhas sem demora.

Sempre que ouvi referências à estranha figura do homem de seis dedos, ligava-as ao depoimento do poeta Otacílio de Azevedo em Fortaleza Descalça” sobre Raimundo Varão: “Era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos, com olheiras cor de azinhavre. (...)

Possuía uma particularidade interessante: tinha seis dedos em cada mão, o que lhe aumentava o misterioso aspecto e talvez justificasse o seu comportamento esdrúxulo. (...) um sentimento de repulsa dele me afastava e me fazia temê-lo, como se ele fosse um monstro daquelas antigas estórias de Trancoso”.

Varão era um artista. Poeta primoroso e desenhista, trabalhava na Fotografia Olsen, do dinamarquês Niel Olsen, tendo como colegas de trabalho os irmãos Júlio e Otacílio de Azevedo e Herman Lima, que depois seria contista famoso e memorialista.

De onde teria vindo? Uns dizem que do Piauí, outros o dão como oriundo de São Paulo. As beatas da cidade supunham que teria vindo do reino de Lúcifer como estafeta de sua maldição. O que importa é que esse ser marcou Fortaleza no começo do século XX por seu comportamento estranho e original e aqui produziu sua arte.

Se o povo falava que ele era o diabo, ou seu missionário nesta terra, era porque o próprio Varão contribuía para que os falatórios se multiplicassem. Imaginem um sujeito alto numa terra de baixinhos, olhos fundos, olheiras roxas, extremamente pálido, vestido de preto, ateu, vivendo sem tomar banho e, além do mais, criando um sapo amarelo no quintal da casa em que morava, com quem conversava e trocava carícias?!

O soturno personagem praticamente não comia. Seu único alimento era cerveja com bolachas. A roupa acabava-se no corpo, e o fato de ser preta disfarçava-lhe a sujeira. Não o odor. Fedia, alguns diziam que a enxofre, que é o cheiro de satã.

Tinha o comportamento daqueles poetas do ultra-romantismo, vivendo paixões unilaterais e arrebatadoras por musas inalcançáveis. Possuído da contradição dos desesperados, falava assim para uma delas:

Anjo, mulher, demônio a quem venero,
Sombra que amaldiçôo e que bendigo,
Luz dos meus olhos, infernal perigo,
Causa de eu eterno desespero.
(...)Raimundo Varão viveu em Fortaleza entre 1911 e 1915. Dizem que foi embora para o Rio de Janeiro. De onde vivia mandou, tempos depois, para ser publicado na imprensa do Ceará, um belo soneto sobre Fortaleza. Era a saudade desta boa terra onde até os mefistofélicos se dão bem”.











Juarez Leitão

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