6 de ago. de 2009




Quando o escritor e jornalista Eduardo Campos (1923/2007) faleceu, fiz uma homenagem a ele, pois além da nossa amizade, ele era um dos colaboradores da Singular. E republiquei uma de suas crônicas, das mais sublimes, focada nas lembranças da sua infância, na Fortaleza “descalça”, com dizia o poeta cearense, Otacílio de Azevedo.




A Sé, a mãe e o menino
Eduardo Campos



Vejo-me em companhia de minha mãe. Estamos em meados dos anos 30, quando senhoras não deviam ir à rua, desacompanhadas. O menino que estava em mim – preserva até hoje – sentia-se feliz, a essas horas, a ver-se tal um adulto, fiel guardião da Isabel Eduardo, a cumprir a obrigação de sair de casa aos sábados, para a sempre aguardada reunião das Mães Cristãs.




Nós dois, dama e menino, caminhávamos pelo passeio, no caso a Rua Castro e Silva, e se mais demora, pois morávamos na Rua do Imperador – estávamos desaguado no amplo espaço, sítio tomado pela Catedral, vestuta edificação, já então maltratada pelo tempo, mas a perseverar como a principal Casa do Senhor, a Sé, de Fortaleza.




Antes, o ritual cumprido pela minha mãe, o de ir ajoelhar-se ao pé do Cruzeiro, atitude de evidente reverência, compartilhada pelo meino que a imitava, a repousar os joelinhos ao chão, o que fazia, valha-me dizer por agora, sentir nojo da abundância de pingos de velas choradas sobre o piso encardido, pois não faltavam velas ardentes ali, a qualquer hora da noite ou do dia, indiferentes ao sopro do vento.




Outro ritual, em sequencia : nossa entrada fazia-se pela porta direita, àquele instante (dez da manhã), pois a do centro, a principal da nave, permanecia cerrada.




Antes de nos tornáramos inquilinos da aura religiosa, do conforto espiritual que navegava no bojo silencioso da Catedral, eu previa que antes mesmo de adentrar ao corpo principal do templo, a Isabel acudir-se-ia de pequena pedra de márore, espécie de bacia presa à parede, onde pescava sumidos resquícios de água benta.




“Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo...”a Isabel Eduardo dizia, presumível senha para que eu repetindo-lha a oração, fosse acolhida por Deus.




Passeávamos vagarosamente em direção ao altar-mor, suntuoso, empanumbrado a esse momento, e mais adiante, já indo tomamos à esquerda, que ali, nesse lugar, demorava a sala – seria a sacrestia? – onde outras senhoras aguardavam.




Minha mãe então me dizia: “Seja bonzinho. Vá, se sente no banco... não demoro muito”. E demorava, que a medida do tempo em igreja decorre lento, e como acontecia àquele instante, sem música, sem vozes, a vida parecia ensonada...




Passados tantos anos, tento em vão recordar a majestade da Catedral, aquele mundo de igreja apreciado medrosamente pelo menino, que sem saber perdia a oportunidade de avaliar-lhe a altura do forro, a largura das colunas, a cor, o brilho dos ladrilhos, ou a feição resignada das imagens, de principal a do Senhor Morto, a mesma que dali, do altar, que ficava à esquerda, partia para a mais aguardada das procissões, espetáculo que trazia ao passeio a multidão, ávida por desfiles religiosos, não raros, por esses dias, a marcar as emoções da urbe de pouco mais de 130 mil viventes.




Tempo em que o Seminário abençoava a fábrica de compenetrados rapazes, padrecos como que saídos de uma recordação da Idade Média, armados em seus roquetes brancos e exemplarmente alinhados em duas compridas filas, movimentam-se com vaidade e competência.




Ainda hoje, acode-me aos ouvidos o ruído da matraca, e tomam-me o nariz os muito bons cheiros de nuvens de incenso libertados de fascinante turíbulo prateado, a fumegar energicamente tangido não pela mão do seminarista vestido de vermelho, mas do próprio menino, que eu era, a ver-se assim figurado...




Foi-se a Catedral, a Sé de minha mãe, a Sé de todo um abençoado tempo de obediência a Deus.




Foi-se a construção centenária, sob a ação rude e atrevida de picareta, pás e marretas. Não tão de repente, mas acabou em escombros. Em pó.




Como nós outros, a Catedral era também uma criatura, tornou ao chão, que a terra era, e virou pó.

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