19 de jun. de 2009


Edmilson Caminha
A sombra do meio-dia dos deputados


O homem que está por trás dos óculos, na foto acima, é uma das pessoas mais bem-informadas do Congresso Nacional. Não exerce a profissão de jornalista (embora seja), não é parlamentar, e muito menos lobista. E, caso possuísse poderes paranormais, certamente não seria o seu fraco bisbilhotar a vida alheia.
Ele sabe primeiro, antes de todo mundo, até do próprio orador, sobre o conteúdo da peça oratória a ser exposta na tribuna. Simplesmente, porque é o autor intelectual do conjunto de palavras lidas pelo deputado.
Esta Singular entrevistou o cearense Edmilson Caminha, 57 anos, consultor legislativo da Câmara dos Deputados. Há 18 anos, ele, particularmente, não é pró nem contra, nem muito pelo contrário. Apenas redigi, no anonimato, os mais sortidos e polêmicos temas.
Como, por que e quando você, escritor, jornalista, chegou ao cargo de consultor legislativo? Como você define a função do ghost-writer?
Em 1990, submeti-me a concurso público de provas e títulos para consultor legislativo da Câmara dos Deputados, em Brasília. Aprovado, tomei posse em 1991, e desde então escrevo discursos para os parlamentares que os solicitam, independentemente da definição ideológica ou da filiação partidária de quem os pronuncie em plenário. Sou, portanto, um ghost-writer, como o foi, por exemplo, o romancista Autran Dourado, um dos escreviam os discursos do Presidente Juscelino Kubitschek. Quando lhe elogiavam algum texto lido por JK, Autran contestava: “Eu sou apenas a mão que escreve”. Há um bom romance do diplomata brasileiro Sérgio Danese sobre uma personagem que escreve os pronunciamentos de um senador: chama-se A sombra do meio-dia, conceito que também muito me agrada. Somos apenas a mão que escreve, e não passamos de sombras do meio-dia, que simplesmente não existem, já que o sol está no zênite... Fico com essas duas definições, para o trabalho que realizo há 18 anos.
Dentre os 513 deputados federais quantos solicitam discursos à consultoria Legislativa? Qual a média de discursos que você prepara por ano? Que tipo de metodologia preparatória você utiliza quando vai escrever um discurso?
Diria que em torno de dois terços dos deputados nos solicitam discursos, além do Presidente da Casa e dos líderes dos partidos, que fazem uso da palavra nas sessões solenes. Escrevo, em média, cem discursos por ano. Procedo, inicialmente, a uma pesquisa sobre o tema, de acordo com a orientação do parlamentar e os objetivos a que se propõe. Importante, também, conhecer a ideologia e a situação partidária do solicitante, além da formação profissional e do nível de instrução do destinatário. Para não citar pessoas vivas, e muito menos aquelas no exercício de mandatos, suponhamos que, hoje, ocupassem cadeiras na Câmara os senhores Guimarães Rosa e Manuel Francisco dos Santos, o mundialmente famoso Garrincha; um, escritor célebre que conhecia onze idiomas; outro, um gênio do futebol que apenas aprendera a ler e a escrever. Claro que um discurso para Rosa poderia primar pelas idéias e pela forma, com citações até em grego, enquanto o texto para Garrincha teria de caracterizar-se pelo conteúdo simples e pela singeleza da linguagem.
Quais os momentos mais tensos e hilariantes que você passou até hoje na Consultoria? O anonimato não lhe incomoda, por exemplo, ao ver um parlamentar fazendo um discurso eloquente, escrito por você, e ser aplaudido?
Não diria hilariante, mas uma solicitação pitoresca foi a de certo deputado que, envolvido com o “mensalão”, pediu-me dois discursos: um para renunciar e o outro para continuar no exercício do mandato, já que não decidira o que fazer. Para poupar tempo e esforço, escrevi apenas um texto, com certo parágrafo que só deveria ser lido em caso de renúncia. Creio que foi o único discurso do tipo “2 em 1” na história da Câmara... O momento tenso devo à revista Piauí, que me entrevistou para uma matéria que saiu na edição de novembro do ano passado. À pergunta do repórter Bruno Moreschi, sobre como escrever discursos para deputados intelectualmente tão díspares, lancei mão, como sempre faço, dos exemplos de Guimarães Rosa e Garrincha. Qual não foi minha surpresa e indignação ao ler, nas páginas da revista, uma referência nominal ao deputado, hoje falecido, Clodovil Hernandes, como representação de um deputado inepto e medíocre. Espanto maior foi saber, pelo próprio Moreschi, que a referência não fora dele, mas do editor da revista, que lhe alterara o texto!!! A conclusão a que cheguei foi que, se a revista Piauí se presta a esse tipo de fraude, imagine o que não é capaz de fazer a chamada “imprensa marrom”... Tenho em mão todas as provas do que acabo de dizer, para quem se interesse em consultá-las. A sordidez da Piauí poderia ter-me causado problemas sérios, como servidor da Câmara que deve respeito funcional a todos os deputados. Por incrível que pareça, o Deputado Clodovil não me processou administrativamente, decerto por a matéria não lhe ter chegado ao conhecimento. Donde se conclui que a revista Piauí não é lida nem por aqueles a quem difama. Quanto ao anonimato, digo sinceramente que não me incomoda: eu apenas ponho no papel o que o deputado quer dizer. A propriedade intelectual é dele, assim como a responsabilidade legal pelo que disser.

Qual a fórmula ideal para a feitura de um discurso?
Creio que um bom discurso deve ter substância, objetividade, clareza e precisão, além, como já disse, de se adequar ao grau de instrução e aos conhecimentos do deputado que o pronuncie.
A entrevista que você fez, em 1984, com Carlos Drummond de Andrade, é considerada antológica, pois o poeta era tímido e muito reservado. Como você conseguiu? E a partir daí como foi a convivência de vocês? Que lembranças você guarda de Drummond?
Homem discreto e muito cioso da sua intimidade, não era fácil, realmente, entrevistar Drummond. Como bom cearense, tanto insisti que ele acabou cedendo, acho que para se ver livre de um chato... Para tanto, desconfio de que também concorreu um saborosíssimo doce de caju, feito em Aracati por minha tia Zuleica, com que lhe presenteei por muitos anos no dia 31 de outubro, quando o poeta fazia aniversário... Aceito no pequenino mundo de Drummond, descobri que se tratava de um homem educado, atencioso, amável e divertido. A imagem de bicho do mato, de urso-polar era, dissimuladamente, cultivada por ele próprio, como um mecanismo de defesa, para livrar-se dos importunos. Fosse receber todos que o procuravam, Drummond não teria tido tempo de escrever a admirável obra que nos legou. Por muitos anos, trocamos cartas – eu em Fortaleza, ele no Rio –, onde minha mulher e eu o visitávamos sempre. Em um desses encontros, Ana Maria grávida de nossa segunda filha, o poeta pediu que lhe comunicássemos o nascimento da herdeira. Foi o que fizemos quando veio Ana Carolina, que ganhou de Drummond um belíssimo poema, escrito de próprio punho. Essa, a lembrança que dele guardo: um homem simples e bom, que pela grandeza humana e pelo raro talento que lhe eram próprios fez o mundo melhor e a vida mais bela.

Como você administra a sensibilidade autoral, escrevendo para os outros e tendo de produzir seus livros? E por falar em produção literária, qual será sua próxima publicação?

É tudo uma questão de disciplina, de método e de organização. Além dos discursos que elaboro, por dever de ofício, e dos livretos que publico, leio, em média, 70 bons livros por ano, o que não é pouco. O próximo lançamento deverá ser Falou e disse, uma coletânea das pérolas que encontrei nos milhares de livros que li, neste últimos 30 anos. Será destinado a estudantes, professores, jornalistas e ghost-writers que queiram enriquecer o texto com citações luminosas e inteligentes. A propósito, e para encerrar esta nossa conversa prazerosa, faço minhas as palavras do grande Jorge Luis Borges: “Outros que se envaideçam dos livros que escrevem: eu me orgulho dos livros que leio.”



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