30 de jun. de 2009

Foto: Arquivo Nirez


PRAIA DE IRACEMA


Ana Miranda *
Nasci na praia de Iracema. De lá tenho as mais acolhedoras reminiscências. Meu pai, que era um próspero engenheiro, e minha mãe escolheram, em meados dos anos 1940, morar num daqueles bangalôs brancos, murados por cercas vivas, com quintais arborizados. Avenida Aquidabã...ao longo da praia. Ali habitavam famílias que tinham a vida calma de cidade que pertence a si mesma. Lembro-me de avistar o mar, o tão evocado mar esmeralda, de águas limpas e transparentes, em que tomávamos banho, eu tinha medo das ondas, eram imensas e eu, uma conchincha...
Em alguns dias o vento se levantava com força, as baixas nuvens de areia batiam nas minhas pernas a ponto de causarem um pequeno suplício, mas que me parecia tão natural quanto caminhar. O vento forte dava a impressão de que eu ia a qualquer momento levantar voo feito um pássaro marítimo para além dos coqueiros, com as raízes à vista, e de suas palmas secas que caíam na alvíssima areia, viravam telhados de cabanas, ou cestas, ali tudo era obra do vento, da natureza, dos homens ainda não tão poderosos com suas máquinas ainda tímidas, as casas nem tinham garagens, os poucos carros dormiam ao sereno tranquilos. E lembro do forte cheiro marinho que impregnava o ar, os cabelos, as roupas de renda engomadas. Lembro das mais nítidas estrelas à janela, dos passeios a pé na ponte dos ingleses, que dizem, era um observatório de crepúsculos, peixes e navios. Eu via as jangadas saindo, ou navegando em horizonte, ou voltando, as redes de pesca estendidas na areia a secar, os moradores da cidade a comprar no fim do dia os peixes prateados trazidos pelos jangadeiros, que os jogavam ali, na areia, ainda quase vivos, com a boca murmurando silêncios. E por trás da praia, um bairro com renques de casas pequenas e bonitas, umas ao lado das outras, onde era comum as pessoas sentarem com suas crianças à calçada, no fim da tarde, ao redor de mesas, numa atividade lúdica e humana que dava a maior graça às ruas dali. Também havia casas grandes, histórias algumas, cercadas de jardins e mistério. Era um lugar idílico, até que o mar passou a avançar e a destruir as construções.
Puseram na areia, então, monte de pedras negras para barrarem a força das ondas.. A praia deixou de existir, passou a ser uma espécie de cais, dique, barragem. Os jangadeiros foram embora para outros lugares, ali não havia mais como descer as jangadas em seco. Muitos moradores se foram. E aos 5 anos fui embora de minha praia natal.
Soube, depois, que aquele bairro bucólico e elegante que ficava diante da praia de Iracema fora, na verdade, uma invasão de pessoas ricas sobre um lugar que tinha sido dos pescadores e trabalhadores, chamava-se outrora praia do Peixe, porque ali os jangadeiros vendiam o seu pescado. Soube, também, que a construção do porto do Mucuripe fora a causa do desaparecimento das areias da praia de Iracema, por haver provocado mudanças nas correntes marítimas. Por muitas décadas voltei ao Ceará, acompanhei as mudanças na praia de Iracema.
Construíram prédios altos, uma larga calçada de madeira passando entre o mar e as antigas casas, que foram reformadas e se tornaram restaurantes.
Criaram um dragão imenso que se chama Dragão do Mar, para música, teatro, cinema, pintura... Reformaram a ponte do Ingleses, infelizmente, mudando seus modos antigos de ser. Hoje, com a maior tristeza, ouço que a praia de Iracema está se tornando um lugar ermo, abandonado, onde perambulam pessoas do baixo mundo, com seus hábitos infernais. Os moradores estão sendo levados a se mudar dali, e,a cada que se vai, é uma nova vitória da devastação. Melancólica, ouço essas notícias. Sei que há pessoas lutando, ali, acolá chamaram o governador, que até agora não resolveu nada, nem a prefeita, fizeram CPI, campanhas, os jornais falam, mas é o tipo de problema mais árduo, porque é muito difícil aquilo que depende de políticos em acordo com as pessoas em acordo entre si. Tenho até sonhado com isso, atormentada. É difícil retornar aquilo que perdemos.














* Ana Miranda é escritora

Crônica publicada na Singular, edição nº 22/2007


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