26 de mai. de 2009



A falta que uma reza faz...

A crônica que apresento a vocês, foi escrita por um dos maiores jornalistas brasileiros, Joel Silveira, já falecido. A história que ele conta, aconteceu aqui, nos verdes bravios cearenses. O texto está contido no livro A Camisa do Senador, e que foi, gentilmente autorizado, pela Mauad Editora, para publicação na versão impressa da Singular. A foto que ilustra a crônica, é de autoria de um outro grande na imprensa brasileira, Jean Manzon, e realizada em outra ocasião.
"Quando chegamos, eu e o fotógrafo, para o passeio de jangada, Chico Pelado, um dos jangadeiros que nos esperavam na Praia do Futuro, em Fortaleza, espantou-se. E foi logo dizendo:
- Vão os dois?
- Vamos.
- Não dá. A jangada não aguenta. Ou vai um ou vai o outro. E se o escolhido for o barrigudo – o barrigudo era o fotógrafo -, pode ir, mas sem estas máquinas todas.

As máquinas todas as que se referia Chico Pelado era a parafernália fotográfica de mais de 30 quilos, uma incrível variedade de câmeras, lentes, o diabo.
O fotógrafo emburrou:
- Vim para fotografar. Se não posso levar as máquinas, não vou.

Também não tinha sentido eu ir sozinho. Ambos tínhamos que fazer uma reportagem, para a qual as fotos eram imprescindíveis. Mas já que estávamos ali, não era justo decepcionar os quatro simpáticos jangadeiros. Chico Pelado, Zico, Manuel Benedito e João da Carminha, que já se haviam oferecido com tanta alegria para a aventura no mar alto a bordo daqueles cinco pedaços de imbiúba. De forma que decidi.
- Eu vou.
E brincando:
- Na volta lhe conto tudo, e aí você me fotografa enquanto vou falando.
Frustrado e amuado, o fotógrafo voltou ao hotel. Não tinha outro jeito. Faltava pouco para as cinco, mas a noite ainda estava fechada, com o céu estrelado, mar trevoso e ofegante. Mas como acontece nos trópicos, onde luz e sombra se alternam sem nuance intermediária, o dia nasceu como uma explosão e o sol logo começou a subir na barra do horizonte, numa orgia de sangue. Rapidamente, o mar passou do verde bilioso a um azul transparente. E o dia se fez total. Então saímos para o mar alto: João da Carminha como mestre de jangada. Chico Pelado de arpoeiro, Zico e Manuel Benedito no rebique e bico de proa. A Guapevo começou a navegar, a princípio pelas ondas mansas, a praia ficando atrás e logo estávamos passando pelo farol do Mucuripe. Foi aí que as ondas começaram a se encrespar.
Chico Pelado mudou as bolinas, João da Carminha soltou a vela. Veio o vento e estufou o pano. O nome Guapevo engordou com o vento e agora os cinco paus de imbiúba pareciam haver endoidecidos: furavam todas as ondas, numa luta corpo a corpo do oceano picado, e iam forçando o vento.
Chico pelado me disse:
- O vento quer que a gente desista e dê meia volta. Mas nosso rumo é lá na frente, é pra lá que temos que ir.
Segurei com força um dos cabos que desciam do mastro e comecei a seguir à risca os conselhos de Pelado:
- Força à direita. Incline o corpo, senão vai se molhar. E grude os pés nos paus.
Meia hora depois, as minhas mãos já ardiam. Mostrei-as a Manuel Benedito, que manejava o leme, e ele estendeu as suas mãos grossas, curtidas, de calos que mais pareciam verrugas, os dedos de unhas rachadas. Mãos que eram como duas pedras: Foi o leme que empredrou elas.
O mar forte sacode agora todo o madeirame da jangada: gemem a trança, os mastro, a barrica, o cozinhador e o peito. Consigo milagres de equilíbrio para não cair no mar e invejo aqueles jangadeiros, tão sólidos, tão confiantes, que se firmam na imbiúna, como se pisássemos chão seguro.
Depois, já no alto mar, de onde não se avista mais a praia, tem início a pescaria. Cada um dos quatro tem muito prazer. A rede é lançada, provocando uma borbulhante festa de espumas, e a cada batida mais forte das águas e do vento, a jangada inclina-se perigosamente
Todos têm muito a fazer, menos eu. Ali, sou mero e temeroso espectador, já um tanto arrependido da aventura para a qual eu mesmo me convidei. Agarro-me ao mastro como um náufrago abraçado ao salva-vidas, evito olhar as ondas que parecem montanhas. Fico a admirar o céu azul e tranquilo. E só não rezo porque não sei rezar. A falta que uma reza faz, penso comigo mesmo. E me prometo aprender uma, o mais urgente possível".

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