21 de abr. de 2010

Brasília – meio século (III)

Sinfonia da Alvorada -

texto de Tom Jobim

para a capa do LP


Setembro, sertão no estio. Frio sêco. Altitude aproximada: 1.200 metros. Ar transparente, céu azul profundo, primavera e pássaros se namorando. Campos gerais, chapadões dos gerais. Cerrado e estirões de mata à beira dos rios. Horizonte: 360º. No fundo do "Catetinho" há um capão de árvores altas por onde passa um córrego de água boa e fria. Seguindo-se a água, sai-se num campo onde fui muitas vezes escutar o pio das perdizes. Silêncio nos campos claros batidos de sol. De repente, de perto, como um grito, vem o piado do macho chamando a fêmea. Silêncio. E de longe chega a resposta. É uma conversa que parece vir do fundo dos tempos. Aquêles dois pontos de som escondidos no capim se procuram, aproximam-se, encontram-se e cantam juntos. Uma nuvem passa e sua sombra corre pelos campos. O vento faz ondas nos penachos do capim: dourado, verde, dourado...

Neste ambiente foi composto "O Planalto Deserto".

A música começa com duas trompas em quintas, que evocam as "antigas solidões sem mágoa" de que nos fala Vinicius de Moraes e a magestade dos campos sem arestas que há milênios se aquietaram. O espírito do lugar prevalece. Duas flautas comentas lìricamente as infinitas côres das auroras e poentes, sôbre um fundo harmônico de cordas em tremolo. O mistério das coisas anteriores ao homem é exposto numa luz clara e transparente: "Onde se ouvia nos campos gerais do fim do dia o grito da perdiz, a que respondia o pio melancólico do jaó". Às vêzes, à beira d'água, surge a trama vegetal dos galhos e lianas . O timbre da orquestra escurece. O infinito horizonte se enche das côres do crepúsculo e se escuta mais uma vez o tema do Planalto.

A 2a. parte aborda o Homem: seu espírito de conquista, sua violência, sua fôrça, seus desejos e seus sofrimentos para atingir o altiplano. Enquanto escrevia a música desta parte, formou-se em meu espírito a seguinte imagem: uma carroça vai penosamente se arrastando serra acima . O Homem instiga os animais. A marcha acelera-se e surge o Canto, a que responde a Natureza, calma e isenta de desejos. Mas o Homem quer as coisas. Seu braço forte, riscado de grossas veias, ergue-se a uma lâmina afiada corta os ramos dessa Natureza imparticipante. O picadão se aprofunda sertão a dentro. O Homem haveria de plantar sua cruz no Planalto.

Na 3a. parte os modernos pioneiros retomam o trabalho dos velhos bandeirantes. O projeto da nova capital é planificado e torna-se necessário, para levar a efeito "a gigantesca tarefa", convocar "todas as fôrças vivas da nação". "A Chegada dos Candangos" conta da vinda desses homens de olhos puxados e zigomas salientes; homens que em toda sua pobreza ainda encontram um jeito de rir e cantar. Homens sem os quais Brasília não existiria.

Segue-se a 4a. parte: "O Trabalho e a Construção". Evitamos a música concreta para caracterizar o trabalho (ruído de serras, estacas etc.) porque isso nos pareceu óbvio. O trabalho é visto de maneira mais subjetiva. A música começa com um fugato que retrata o inicio da ação. A sorte está lançada. A inexorabilidade da ação é posta em evidência. O fugato desenvolve-se de maneira matemática. A tônica é o centro de tudo: as tonalidades satélites vão e vêm mostrando suas côres puras, mas tudo reverte à ofuscante tônica central. Há um plano de construção e êsse plano é rigorosamente respeitado. Por vêzes o trabalho cessa para dar lugar à contemplação da obra já feita, e três trompas aparecem sugerindo a graça e leveza líricas do Palácio da Alvorada diante da "grande planície ensimesmada", de que nos fala Vinícius. Mas o trabalho tem de prosseguir. Surge um rítmo marcato nas vozes masculinas e no piano, aqui usado como instrumento de percussão. Depois os arcos tomam a si o mesmo motivo e às vezes, eventualmente, se lamentam, como a dizer que nenhum trabalho é feito sem sofrimento. Os instrumentinos e logo os metais retomam o marcato, a sugerir o sol no zenite reverberando nas superfícies brancas, ferindo os olhos dos homens que trabalham. Novos temas arquitetônicos aparecem, cortados por uma frase de inusitado lirismo: pois o trabalho é tambem amor e poesia. Volta uma vez mais o tema do Palácio da Alvorada e tudo se encaminha para um desfecho inevitável. As tonalidades satélites mostram novamente suas côres, mas a tônica domina tudo. Os fatos se precipitam e o trabalho e a poesia dão-se as mãos. Algumas celebrações, alguma grandiosidade e o trabalho se conclui de repente numa frase triste, enunciada pela voz humana . Os homens voltam para suas casas na melanconia do poente. Um canto-chão diz de suas solidões, de suas tristezas, de suas mulheres ausentes. As cordas tomam a si o canto-chão, enquanto o texto fala dessa saudade dos homens por suas mulheres. Surgem pela primeira vez na Sinfonia vozes femininas que contrapontam intuitivamente com as vozes masculinas. Depois em bocca chiusa volta o canto-chão nas vozes masculinas retomando o tema da solidão. Um acorde de orquestra transporta ao tom relativo menor e vem a treva total. Surge, independente do Homem, o tema do "Planalto Deserto", da primeira parte.

Segue-se, na 5a. parte, o Coral final, comemorativo da realização. Vinícius usou além da palavra-sentido, a palavra-som, o que causa muitas vêzes um efeito surpreendente. O Brasil aparece em toda a sua nostalgia e grandeza. Uma nova civilização se esboça. Herdeiro de todas as culturas, de todas as raças, tem um sabor todo próprio.

Rio, Janeiro de 1961

ANTONIO CARLOS JOBIM


(OBS: Todas as informações sobre a Sinfonia da Alvorada foram colhidas no site Jobim.com.br)

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