Brasília – meio século (II)
texto de Vinicius de Moraes
para a capa do LP
A idéia de escrevermos uma Sinfonia celebrando Brasília não é nova. Em fevereiro de l958, eu acidentado num hospital de Petrópolis, conversei pela primeira vez com Antonio Carlos Jobim sôbre o assunto. Ainda no correr dêsse mesmo ano, alguns dos temas musicais aqui constantes já haviam sido compostos pelo jóvem Maestro.
Houve logo, é claro, quem falasse em obra "encomendada" e outras tolices do gênero, o que feriu certas suscetibilidades de Jobim. E a tarefa ficou postergada para dias mais inteligentes. Até que, de volta do meu pôsto em Montevidéu, em junho de l960, recebi uma telefonada de Brasília. Induzido por êsse querido amigo que é Oscar Niemeyer, o Presidente Kubitschek, também um velho amigo, convidava-nos para criar, com os técnicos da firma francesa "Clemançon", especializada na matéria , um espetáculo "Son et Lumière" para a Praça dos Três Poderes, à maneira dos que são feitos nos principais castelos francêses e em vários outros grandes monumentos do mundo, como a Acrópole, as Pirâmides e tantos mais, para fins de atração turística.
Era a oportunidade. Brasília já deixara de ser um sonho para transformar-se numa realidade de âmbito mundial. A cidade empreendida por Kubitschek e criada por Niemeyer sôbre o plano-pilôto de Lúcio Costa, outro grande e caro amigo, erguia suas brancas e puras empenas nas antigas solidões do planalto central de Goiás, em extensões apascentadas pela vetustez da terra e pela proximidade do infinito, numa paisagem de oxigênio, silêncio e saudade das origens. O lugar mais antigo da terra, como gosta de dizer Jobim, povoava-se ràpidamente; e malgrado as pragas de um grupo de ressentidos, os que preferem governar o país nas proximidades das buates, a cidade crescia num ritmo alegre de trabalho e confiança, com turmas a se revezarem de sol a sol . De nada valia o pio das aves de mau agouro da imprensa e de alhures, contra o ímpeto maravilhoso do trabalhador brasileiro, que acorreu de todos os cantos do país, sobretudo do Norte, para erguer aquelas estruturas adiante do Tempo e para coabitar pacìficamente numa "cidade-livre" levantada do dia para a noite com restos de material de construção: uma autêntica cidade de "far-west", só que sem os tiros e bandidos do cinema.
Esboçado o plano da obra, partimos para Brasília afim de estruturar temas e poemas em contato humano com a cidade. Hóspedes do "Catetinho", hoje tombado como monumento histórico, olhávamos de nossa sala-de-trabalho - a mesma em que o Presidente Kubitschek assinou seus primeiros atos na nova capital - a silhueta quase sobrenatural da cidade na linha extrema do horizonte, recortada contra auroras e poentes de indizível beleza. De madrugada, enquanto víamos congelar-se no ar frio o jato ascencional do Boeing-707, escutávamos tambem o piar das perdizes e dos jaós, entre as surdas rajadas intermitentes do vento do altiplano.Havia em nós essa tristeza que nasce da beleza, e pavilhávamos os capões de mato com a sensação do irremediável do tempo. Jobim, caçador experimentado e velho piador de pássaros, arremetia mais longe do que eu. Eu voltava, a partir do lindo ôlho dágua do pequeno bosque, para os meus intermináveis passeios na alpendrada do "Catetinho", onde ficava a pensar o texto da Sinfonia e a esperar a comida simples e gostosa que nos dava "a patrôa" de Luciano, o caseiro: o mais antigo funcionário de Brasília. Apraz-me dizer nunca ouvi, ao longo das horas em que Antonio Carlos Jobim mergulhava no mato, um só tiro pertubar o silêncio das velhas planuras. É minha impressão que o músico perdeu a coragem de chumbar seus coleguinhas alados, mesmo quando constituam ótimo comestível, como é o caso das perdizes.
Dez dias ficamos assim no "Catetinho", nesse dolce far niente de fazer uma Sinfonia, com sentinela à porta, pois a princípio os numerosos turistas punham sempre o nariz na vidraça para constatar como íamos de trabalho. De vez em quando dávamos um pulo à cidade para ver os amigos Oscar Niemeyer, José (Juca) Ferreira de Castro Chaves, João Milton Prates - os bravos pioneiros de Brasília, os homens que, com o Presidente Kubitschek, primeiro puseram o pé no planalto. João Milton Prates, herói da FAB, antigo pilôto e amigo de JK, grande e bom amigo nosso, êsse vinha sempre nos ver, com vitualhas e licores, e tomava pela obra em progresso um interêsse quase criador. Um dia exibiu-nos, de sua carteira, a histórica promissória de 500 contos, firmada por êle e Niemeyer, com a qual puderam erguer em dez dias o incomparável "Catetinho". Ao grande Presidente e a todos êsses homens que não têm frio nos olhos, mas cujos olhos se umedeceram ao ouvirem pela primeira vez ao piano os temas iniciais da "Sinfonia da Alvorada", - a nossa comovida gratidão, não só pela confiança que tiveram em nós como pelo exemplo que nos deram de ânimo, modéstia e espirito de luta.
Falei em piano. É fato. João Milton Prates providenciou-nos um piano que veio de Goiânia. Ajudados por Luciano e três candangos, nós o subimos a braço para o "Catetinho", com mais mêdo de que seus degraus cedessem ao pêso do que de um enfarte do miocárdio. Naturalmente, pois o "Catetinho" é hoje um monumento histórico, e a estátua do Fundador de Brasília parecia apreensiva, sôbre o seu pedestal no terreiro em frente, com os resultados de nossa operação.
Temos um último e mais íntimo agradecimento a fazer: da parte de Antonio Carlos Jobim, a Thereza Hermanny Jobim, sua mulher, e Celso Frota Pessôa, um padastro que é mais que um pai, que deu mão forte a um jóvem estudante de arquitetura cuja verdadeira vocação era a música; de minha parte, a minha mulher Maria Lúcia Proença de Moraes. A "torcida" dos três, sem embargo de uma constante vigilância crítica, nos foi sempre do maior estímulo nesse empreendimento em que dois sentimentos são determinantes: amor pela obra e confiança no futuro de Brasília e do Brasil.
Rio, Janeiro de 1961
VINICIUS DE MORAES
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