10 de ago. de 2009



O Nobre colega é
dama de espadas


Por Ethel de Paula


Com a palavra, Jaime Dutra, 41, advogado, vice-presidente do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), entidade civil de utilidade pública voltada à defesa dos direitos civis da comunidade homossexual em Fortaleza. Na vida pública, assim como na esfera profissional, ele é ela: Janaina, único travesti a exercer a advocacia no Brasil.


Hoje, coordena dois projetos: Direito e Cidadania, com financiamento do Ministério da Justiça através da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos ; e Travesti – Prevenção e Organização Social, pago com verba do Ministério da Saúde. Na contramão dos estereótipos, prefere ler a frequentar boates ou guetos; é bem aceito pelos pais, que moram em Canindé; seus ídolos não são exatamente artistas, mas figuras que lutam por causas sociais. Com orgulho, bate no peito outrora cabeludo e diz: “Sou uma bela dama de espadas”.


Como foi a sua infância?


Nasci em Canindé e tive uma infância muito pura, de andar a cavalo, empinar papagaio, de banho de açude, tomar leite de cabra no peito, brincar de boneca (ri) . Então despertei mais para a sexualidade na adolescência. Minha mãe era professora, ensinava em um colégio de padre e freira. Meu pai era funcionário do Dnocs. Morávamos na rua principal da cidade. Nesse ponto tive sorte, minha mãe sendo uma educadora me estimulou muito a adquirir conhecimento. Fiz universidade particular, Direito, na Unifor. Entrei em 81.2 e saí em 86.1. Mas sempre fui muito afeminado desde pequeno. A história de virar travesti é que já foi depois da faculdade, quando eu já tinha um escritório no Centro, o que foi até mais complicado, porque depois de você já ter um personagem masculino construído, apesar de uma aparência feminina ou homossexual, desconstruir tudo isso era passar às pessoas uma androginia maior. Ainda mais numa profissão que mexe muito com a falsa moral, a hipocrisia social, que é ligada às normas, aos costumes. O Direito é muito careta, as excelências são muito caretas. E numa terra de cultura machista como a nossa é muito mais fácil você confiar em um advogado que fale grosso, coce o saco, tenha bigode... É como se por conta da minha orientação, sendo irreverente, tendo, digamos, essa aparência afrontosa, eu pudesse prejudicar meus clientes. Mas isso é que me estimulou ainda mais a mergulhar fundo nos livros. Para não ser só aquele viadinho de peito, de cabelo grande.


Quais os casos mais comuns que levam até você como advogada?


Extorsão policial, briga entre elas, com clientes. Deixo sempre no ar esse senso comum que diz que travesti é uma classe violenta: essas ações são na verdade reações a toda uma negação social que começa na família. Mas os casos são variados. O que tem é muita discriminação e violência: o homossexual é impedido de entrar num hotel, é agredido fisicamente, verbalmente. Tem muito caso de agressão contra travesti. Falta de consciência, de convivência verbal. Fortaleza é tida como a cidade onde mais são cometidos assassinatos contra homossexuais. No jornal, recentemente, teve um caso de um arcebispo de Fortaleza que deu uma declaração ligando a homossexualidade à cleptomania, aberração da natureza, coisas assim. Acionamos então o Ministério Público para que tomasse as providências. Entramos com um pedido de retratação e ele voltou atrás, disse que não era bem aquilo que queria dizer, se retratou junto ao Ministério Público. Quer dizer, ainda há muito trabalho pela frente. Até quando se vai falar publicamente fala-se errado. Por exemplo, não se usa esse termo homossexualismo e sim homossexualidade. O sufixo ismo vem do latim e significa discussão, doença e patologia. Ao usar esse termo continua-se reforçando a discriminação.




Qual a sua utopia?

Ter uma sociedade mais tolerante.

* Dois anos depois desta entrevista à SINGULAR, Janaína faleceu, em fevereiro de 2004, aos 43 anos de idade.

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