14 de ago. de 2009


Frei Tito


Suicídio ou assassinato?



O calvário de Frei Tito de Alencar Lima ainda não terminou. Após 26 anos (Singular-edição de setembro/2.000) de sua morte ( 10 de agosto de 1974) dependurado numa corda em Villefranche-sur-Saône, pequeno lugarejo francês, uma terrível dúvida ainda persegue seus familiares. Os parentes não aceitam a versão de suicídio. “Tito foi assassinado”.


Pela primeira vez, sua irmã Nildes de Alencar Lima dá entrevista, emocionada, sobre as circunstâncias do falecimento do religioso cearense aos 29 anos de idade. Torturado no Brasil, até os limites de um ser humano, acusado de subversão (ele foi preso em novembro de 1969, em São Paulo, com outros dominicanos, acusados de colaborar com o líder comunista Carlos Marighella). O dominicano viveu seus últimos dias na França, como exilado político, traumatizado, dominado por alucinações projetando seus algozes dentro de sua mente doentia, perseguindo-o até a morte. Neste depoimento exclusivo à Singular, Nildes busca no passado explicações para várias interrogações sobre o que na verdade aconteceu. Ela esteve com Frei Tito, no Natal de 1973. No encontro com o irmão, poucos meses antes da morte deste, Nildes soube de várias informações nebulosas sobre pessoas que o perseguiam. Hoje, 26 anos depois, ela tenta reconstituir e compreender o desfecho trágico da vida do religioso, vejam seu depoimento:
A VIDA COMO DOAÇÃO

"O comportamento de Tito nunca foi enquadrado, por estudos psiquiátricos, como doentio e de que ele tivesse tendência para a autodestruição. Primeiro, porque meu irmão era uma pessoa profundamente religiosa e a vida era pra ele, um dom de Deus. E pela à sua formação religiosa, só a Deus é permitido tirar a vida. E mais: ele concebia o sentido da vida como doação ao outro. Basta relembrar as suas atitudes em prisões brasileiras antes de seguir para o exílio (em dezembro de 1970 o nome de Frei Tito figurava na lista dos presos políticos que deveriam ser soltos em troca da vida do embaixador suíço Giovanni Eurico Bücher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária). Um fato ocorrido na Penitenciária Tiradentes, em São Paulo (Frei Tito cortou as artérias no braço esquerdo), demonstrou claramente a doação de sua vida, num gesto de denúncia contra as torturas e sua preocupação com os outros padres que poderiam ser presos, e também torturados. Ele já tinha passado três dias em sessões de tortura ininterruptas. Ao mesmo tempo que os torturadores praticavam violências contra ele, outros dominicanos eram procurados. E ele, consciente daquelas atrocidades e testemunhando mortes de companheiros, tomou aquele decisão de ferir o próprio corpo, denunciando o terror. Todos que conheciam sua história entendiam aquele posicionamento, como sendo a primeira denúncia no Brasil e no exterior ( seu relato de tortura ganhou o prêmio de melhor matéria do ano/1970 da revista Life). Embora muitos soubessem do que ocorria nos porões da ditadura. A Igreja, psiquiatras, médicos, advogados e os presos compreenderam aquela atitude.
INGLESES PERSEGUIDORES
Agora, o Tito ao aparecer morto (antes de ir pra França, Frei Tito primeiro exilou-se em Santiago do Chile, depois voou para Roma e, finalmente Paris) num local ermo, que parece ter sido escolhido propositalmente: dependurado perto de uma rampa de lixo a poucos quilômetros de Lyon, onde ficava o convento dos dominicanos. Só que nos meses anteriores ele vivia em constante ansiedade. Percebi isso quando passei dois meses com ele (dezembro/janeiro – 1973/74), a sua angústia de dizer-me que estava sendo perseguido. Eu pensava: se aquele comportamento era uma alucinação psicótica, psíquica das torturas passadas dentro de um quadro evolutivo ou era uma realidade? Será que tinha alguma pessoa atrás dele? E conversando com ele, observando, analisando e vendo os seus gestos, eu via que ele demonstrava ansiedade: para onde a gente fosse alguém estaria seguindo.
E tenho provas concretas para pensar assim: quando ele estava em Paris, dois ingleses o procuraram para fazer uma entrevista com ele. Naquela ocasião, meu irmão não quis dar depoimento porque estava exilado, banido e a sua situação não permitia. E não queria se expor tanto. E os dois ficaram perseguindo ele o tempo todo. A partir daí, conforme constatei na França, ele passou a ter, mais acentuadas as crises psicóticas de alucinações. Como também acentuaram-se ainda mais essas crises com a ida do Fleury ( Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social – Dops ) à França para receber condecorações. A presença do torturador em Paris, ele associou imediatamente a algum mecanismo de complô ou a alguma coisa contra ele. Outros brasileiros exilados morreram em circunstâncias misteriosas.

FREI OSWALDO CONFIRMA

Abalada, o que fiz em Paris: procurei falar com o Oswaldo Rezende , outro dominicano brasileiro exilado, e pedi-lhe que fizesse um relato da situação do Tito. Conversei uma tarde inteira com o Oswaldo e ele confirmou a história dos dois ingleses que Tito havia contado. Só que o dominicano disse que ‘aquilo era bobagem do Tito’. Discordei e questionei sobre a presença dos dois estranhos perseguindo o meu irmão. Oswaldo ficou calado. Outro testemunho, que nunca mais esqueci, foi dado por um frade franciscano, aqui em Fortaleza, depois da morte do Tito. Ele apareceu, certo dia, na porta da minha escola querendo falar comigo. E revelou: Eu quero dar um testemunho. Eu preciso dizer isso. O Tito estava sendo perseguido em Paris. Certo dia, eu vinha com ele, atravessando uma rua, vi dois homens, e um deles pegou uma máquina fotográfica apontou para nós e bateu fotos. Aí, mais uma vez, eu questiono: qual interesse dessas duas pessoas em seguir Tito e até fotografá-lo?
MEDO EM LUGARES PÚBLICOS
Quando conversava com o Tito eu notava, em determinados momentos, que ele aparentava muito bem... Mas, qualquer coisa desestruturava a segurança que ele próprio montava para si. Então, certo dia, num restaurante, disse pra ele: ‘sinto, meu irmão, que você tem medo de alguma coisa. O que é que você tem? Eu estou aqui com você’.
Bastou o dominicano, nosso cicerone, atrasar dez minutos para buscar-nos. O curto tempo de espera provocou um desacerto, desequilibrando totalmente o meu irmão. Olhava para um lado, para outro, demonstrando medo de que alguma coisa chegasse até ele. Então, Tito disse: ‘Nildes se eu lhe disser o que realmente está acontecendo comigo, você vai me entender!’ Bom, eu associei com a questão da perseguição. Mas não quis forçar muito no questionamento, porque temia que ao mexer, pudesse desencadear uma crise. Mas dava para perceber que alguma coisa estava limitando a vida dele.
Senti a força maior do estado emocional do meu irmão no dia em que tínhamos programado um passeio e ele não quis ir. Olhei pra ele e vi que realmente não tinha condições de me acompanhar. E disse-me essas palavras: ‘Acho que já está na hora de você voltar, porque você já cumpriu a sua missão’. Mas aquelas palavras ofereciam duas interpretações: ele estava querendo distanciar-se de mim, talvez pelo medo de que algo pudesse acontecer comigo. Entretanto, ele sentia a necessidade da presença da minha pessoa, porque depois ele foi para o quarto, deitou-se e pediu-me para ler o evangelho de São João que fala exatamente da ressurreição de Lázaro.

PREMONIÇÃO E ARREPENDIMENTO
Chegou o dia de eu regressar para o Brasil. Acontece que não tive o cuidado de explorar mais a história das perseguições, enquanto estava com ele. E até hoje, eu me arrependo de não ter insistido com o Tito sobre os dois perseguidores. Ele poderia ter dito alguma coisa. Vim embora, com a premonição que algo terrível ia acontecer. Mas a minha premonição baseava-se na intuição que meu irmão ia matar-se, a mandado da voz fruto da sua mente doentia, ou daqueles que o perseguiam. E foi o que aconteceu. Seu corpo foi encontrado ao lado de uma rampa de lixo. E reconheço, hoje, que nós da família fomos imaturos em não querer aprofundar investigações sobre a circunstância de seu suicídio. Não sabemos se o corpo dele foi para o Instituto Médico Legal, se fizeram exames. Apenas ouvimos do frade dominicano francês Xavier Plassat, que dava acompanhamento ao Tito, é que certa vez, antes do desfecho, chegou a casa onde o meu irmão morava e viu uma corda em cima da estante. Aí Xavier indagou: Tito, você não está pretendendo usar essa corda? E ele respondeu: ‘Não, absolutamente’. Também foram encontrados rabiscos dele, e, em alguns estava escrito: Corda ou Bacuri? Essas indagações podem ser interpretadas como dois tipos de opções para a morte. Morte por enforcamento ou por meio de outros sofrimentos que o matassem como a repressão policial brasileira matou um rapaz chamado Bacuri, depois de longas e impiedosas sessões de tortura.
Então, a morte de meu irmão foi interpretada como um ato de um doente mental que pôs fim a própria vida. Só que a família nunca aceitou essa versão, porque, durante muito tempo, tivemos reserva em falar sobre esse assunto. E a gente temia que psicologicamente influenciasse a formação dos nossos sobrinhos. E foi um assunto que a gente resguardou durante muito tempo. Os dominicanos também tiveram o mesmo posicionamento. A Ordem dos Dominicanos, por seu prior Frei Fernando, acredita e tem a certeza que meu irmão foi levado para a morte...
Mataram o Tito".

Um comentário:

  1. A Igreja Católica do Ceará há muito ja deveria ter iniciado processo de canonização de Santo Frei Tito...E qual o milagre dele???Nada de milagres,ele é um mártir e todos mártires são santificados no propprio sangue...A ditadura matou muitos inocentes, e Frei Tito deu sua vida quando foi induzido ao suicidio,ou quiça,morto com aparencia de suicidio....Não é tarde para se iniciar o processo de canonização que a Singular ja iniciou informalmente.

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