Dizem que não se faz mais sambas como antigamente. Mas numa conversa com Martinho da Vila se pode constatar que o que não se faz são sambistas como antes. Aos 72 anos, sendo mais de 40 de carreira, um dos mais populares compositores e cantores de samba não foge de polêmicas. Sobre o período da ditadura militar, por exemplo, lembra que fez propaganda para o alistamento de jovens. “Me usaram mesmo”, afirma. Agora, virou protagonista do documentário Filosofia de Vida - O Pequeno Burguês, que acaba de ser lançado em DVD pela MZA Music.
De origem humilde, nasceu pobre, cresceu no morro e tentou a sorte no Exército. Foram 13 anos servindo às Forças Armadas, no período em que o País vivia suas páginas mais dramáticas. “Nenhuma vez tive vergonha de estar lá, nem no período da ditadura. Quando vejo o ser humano fazer uma coisa terrível, fico com vergonha é do ser humano”, diz ao iG. Sobre a censura e perseguição à liberdade de imprensa, o cantor acredita que também houve quem se beneficiou desta fase. “Tem artistas que produzem mais na adversidade. Criou-se, na época, um grupo de artistas de protesto, que só fizeram sucesso naquele período. A censura trouxe sucesso para alguns. Teve quem ficou apenas nas canções de protesto, viveu da censura”, afirma.
Presidente de honra da Vila Isabel, escola que em abril teve o presidente preso, acusado de ligação com a máfia das máquinas de caça-níquel, Martinho fala também de como é difícil gerir uma agremiação do carnaval. “É muito difícil ser presidente. Você lida com polícia, bandido, comunidade, imprensa, artista... É mais light ser secretário de Saúde do Rio do que ser presidente de escola de samba”, compara.
Autor de sambas populares como “Mulheres”, “Devagar, Devagarinho”, Martinho hoje se diz comunista e aposentado da tarefa de fazer sambas-enredo. Pelo menos enquanto os enredos forem patrocinados. “Não dá para compor uma letra sobre o cabelo”, ironiza ele, a respeito do tema que sua escola adotou para o próximo carnaval. Martinho é sambista à moda antiga.
iG: O pesquisador musical Sergio Cabral diz, no documentário, que “se tivesse que reduzir o Brasil que dá certo a um único ser humano, este seria Martinho da Vila”. É muita responsabilidade, não?
MARTINHO: Eu vou ter que ser bom caráter a vida inteira (risos). Por causa desta frase do Cabral, que é muito meu amigo, não vou nem poder fazer um mau-caratismozinho de leve (risos).
iG: O documentário tem o mesmo nome de uma música sua, “O Pequeno Burguês”. A letra “Morei no subúrbio/ Andei de trem atrasado/ Do trabalho ia pra aula/ Sem jantar e bem cansado” é autobiográfica?
MARTINHO: Morei em favela, fui criado no morro, mas não é sobre mim. Ela foi feita para um amigo do Exército, que não teria nos convidado para sua formatura. Depois, ficamos sabendo que ele não teve dinheiro para bancar a formatura. Ele não tinha nem terno para o baile.
iG: Você serviu por 14 anos ao Exército. É a favor do serviço militar obrigatório?
MARTINHO: Sou, sabe por quê? As Forças Armadas são o único lugar que nivela todo mundo igualmente, por baixo. Quem foi criado no azeite e no mel vai ter que comer a mesma comida, fazer faxina, levar broncas, acordar no mesmo horário que todos os demais. O que sobra de melhor é a disciplina.
iG: Você serviu de 1956 a 1970, pegando o período mais tenso da ditadura militar. Como via a repressão e a perseguição aos artistas?
MARTINHO: Eu servia na Diretoria Geral de Engenharia e Comunicações, no Centro do Rio, onde todo o projeto foi moldado. Em 1964, quando estourou o golpe, fui trabalhar e não me deixaram entrar. Tinha muita Polícia do Exército. Mandaram voltar no dia seguinte. Tinha lista dos subversivos, dos que eram simpáticos ao regime e dos indecisos. Eu estava nesta terceira. Depois de uns quatro dias, mandaram eu voltar a trabalhar normalmente.
iG: Sabia da censura?
MARTINHO: Fui militar de gabinete, minha função era burocrata. Mas eu sabia, ainda que tivesse muito soldado isolado nos quartéis, que não faziam ideia do que acontecia... A grande parte dos artistas que está aqui hoje surgiu naquele período. Tem artistas que produzem mais na adversidade. Criou-se, na época, um grupo de artistas de protesto, que só fizeram sucesso naquele período.
"Tem artistas que produzem mais na adversidade. Criou-se, na época (da ditadura militar), um grupo de artistas de protesto"
iG: Neste sentido, a censura foi boa para alguns grupos de artistas?
MARTINHO: Sim, ela trouxe sucesso para alguns. Mas o artista que permaneceu além daquela fase é porque era talentoso. Alguns, como um compositor de samba-enredo, não sabem fazer outra coisa. Teve quem ficou apenas nas canções de protesto, viveu da censura.
iG: Em algum momento você sentiu vergonha de ser militar?
MARTINHO: Nenhuma vez, nem no período da ditadura. Quando vejo o ser humano fazer uma coisa terrível, fico com vergonha do ser humano. De forma geral, todos deviam servir ao Exército. Não podiam fazer comigo o que fizeram com Caetano e Gil, porque eu era extremante popular. Minha popularidade era mais abrangente. Quando pedi baixa, tive que negociar. Militar é proibido pelo regulamento de ter outra função, ainda mais se esta função é ser artista. Em troca da baixa, eu seria usado como propaganda favorável do regime. Fiz propaganda para o alistamento dos jovens. Me usaram mesmo.
iG: Você é a favor do pagamento de indenizações a ex-presos políticos?
MARTINHO: Você está me fazendo perguntas muito complicadas. Aconteceram excessos mas, para chegar onde estamos hoje, houve a anistia geral. O mais lógico seria te responder que sou favorável, que é a tendência mundial. Mas há casos que são passado, não tem jeito. É o mesmo que pedir para se indenizar todos descendentes de negros, eu inclusive, que sofreram com a escravatura.
iG: Como o comunismo entrou em sua vida?
MARTINHO: Nunca tive ideologias. Por origem, vim de família getulista. Quando entrei para vida artística, fui a Angola, que estava em processo de independência. No Brasil, não se falava em África, ninguém sabia o que estava se passando com os países africanos. Era como se fosse um continente inexistente. Vivenciando a realidade de lá, comecei a me interessar pela doutrina pregada pela antiga União Soviética, que era quem estava apoiando as guerras pela independência.
iG: Você se candidatou há pouco tempo a uma vaga na ABL. Por que decidiu tentar ser “imortal”?
MARTINHO: Sou mais de ação do que de palavras. A Academia é elitista. Tirando Machado de Assis, o fundador, tivemos mais uns dois ou três negros
Foto: Léo Ramos
São 72 anos, sendo mais de 40 de carreira
acadêmicos neste tempo todo. Não era um projeto de vida meu ser acadêmico, não tenho necessidade disso. Minha candidatura foi mais uma atitude para provocar a discussão da inclusão social do negro.
iG: Houve alguma rejeição ao seu nome, pelo fato de não ter recebido nenhum voto?
MARTINHO: Fui incentivado a me candidatar pelos próprios acadêmicos. Quando se está lá dentro é que a gente entende o jogo da eleição. Eles já sabem quem vai ser o próximo a ser eleito, mas precisam que haja candidatos que tragam mídia, que coloquem e depois tirem a candidatura... Geralmente elegem quem perdeu ou tirou a candidatura num momento anterior. Mas não tenho mágoa deles.
iG: As UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora) chegaram recentemente em morros próximos à Vila Isabel, na zona norte. O que pensa sobre isso?
MARTINHO: Hoje sou favorável. Eu morei em favela, era muito contrário a isso. Favelado tem medo de duas coisas: de polícia e de invasão de outras facções criminosas. O que está sendo feito agora deveria já ter sido feito antes. Agora, não está sendo feito como deveria ser. É preciso tomar o morro e levar junto defensoria pública, hospital, escola...
iG: Pensa em voltar a compor para sua escola de samba?
MARTINHO: Digo que não e, quando chega perto do carnaval, já estou envolvido no clima da avenida. Hoje, digo que não vou mais fazer. Mas pode ser que um enredo em algum momento me atraia...
iG: A Vila vai fazer, no próximo carnaval, um desfile sobre o cabelo. Você é a favor desse tipo de enredo?
MARTINHO: Não, não, não. Isso me entristece como sambista. Dá para fazer um desfile só com o dinheiro que vem da prefeitura e dos ensaios de quadra. Com três milhões e pouco, sem patrocínio, se faz um carnaval. Não tem a menor chance de eu compor um samba sobre cabelo (risos). Não tem assunto, né?
iG: O presidente da Vila, Wilson Vieira Alves, foi preso em abril, acusado de envolvimento com a máfia dos caça-níqueis. As escolas de samba precisam de um "choque de ordem"?
MARTINHO: Não. Conheço profundamente uma escola de samba a ponto de falar que é muito difícil ser presidente, porque você lida com polícia, bandido, comunidade, imprensa, artista... É mais light ser secretário de saúde do Rio do que ser presidente de escola de samba.
iG: Uma escola de samba, hoje, sobrevive sem ligação com bicheiros?
MARTINHO: Completamente. Os bicheiros foram fundamentais num período da história das escolas de samba, antes delas serem subsidiadas pelo governo. Hoje não há necessidade alguma disso. A Liesa (Liga das Escolas de Samba) pode ser presidida por qualquer pessoa com muita liderança e capacidade administrativa.
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