2 de mai. de 2009

Mário Gomes – O último poeta da Fortaleza Descalça

O poeta Mário Gomes, em suas andanças pelo coração de Fortaleza,

leva consigo (embora cruel hoje em dia, por conta de sua saúde
muito debilitada) a imagem da Fortaleza descalça como escreveu
o poeta Otacílio de Azevedo (pai dos escritores Sânzio e Jandira,
do astrônomo Rubens e do pesquisador Nirez). Mário, personagem
popular daquela Fortaleza chistosa, genuinamente humana,
à época em passantes tinham tempo para se deleitarem, ouvindo
os poetas da Praça do Ferreira. Ou acompanhar, glosando e se
divertindo com tipos esquisitos e curiosos, como a “Burra Preta”,
Zé Tatá e tantos outros. Esses personagens da Fortaleza descalça
já se foram. Só ficou Mário Gomes, vagando, alquebrado, em ziguezague.
Ele, o último retalho da Fortaleza descalça e humana.Escrevi o texto
acima para apresentar-lhes uma crônica comovente e sincera,
“Para o Aniversário de Fortaleza”que recebi, via e-mail,
escrita por Raymundo Netto:
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Comendo lagartas
e defecando
borboletas
Tumulto na rua.
camburão da polícia
chegava em frente ao Palacete
Ceará à praça do Ferreira.
Assalto? sequestro? Não,
prenderam “O” poeta.
Quem? Ora, quem...
o Mário Gomes,
sabe, não? Era isso mesmo.
Mário Gomes, aquele que
conseguiu se estabelecer
como poeta, mesmo por quem não conhece ou lembra um
único verso seu — ao contrário de outros que lançam
livros e livros, recebem títulos e medalhas,
cobertura da alta imprensa e ninguém admite a honraria —,
o tipo popular-mor da nossa blond cidade estava sendo preso.
Motivo? Baixara as calças para alguém que caçoara de
seus trejeitos, de suas vestes, de sua existência.
Ele reagiu, a polícia chegou para pôr ordem e recolheu o
“poeta das sarjetas” no pára-choque do camburão.
Uma multidão de populares o acompanhou.
Alguém se dirigiu ao oficial e, como se existisse tal licença
(imunidade?) poética, perguntou: “Ele é o Mário Gomes,
o poeta, o senhor não o conhece?”
Uma senhora chora, outra resmunga: “Deviam prender
é bandido!” O povo se revolta, discute, os policiais pareciam
nervosos.O Mário, coitado, vestido como um Judas em Sábado
de Aleluia, bodejava alguma coisa incompreensível, sei lá o
quê, balançava as mãos e fazia caretas tal qual um
menino malino, “um enigma das letras, um amante das estrelas”.
A barba malfeita perseguia os cabelos ralos, o nariz torto separava
indiferentes olhos verdes a balançar os inchados tornozelos.
Aproximei-me e perguntei o que acontecera. “Eu só queria
lançar o meu livro (refere-se à biografia) de novo”, retirou do
bolso Mário Gomes: poeta, santo e bandido do Márcio Catunda,
abriu e leu: — O meu legado, deixo ao querido povo cearense!
— daí, treme, lacrimejam os olhos, não gosta que o vejam assim,
dá-me as costas, passa um lenço na vista, volta-se quase que
esfregando o livro nas minhas ventas e repete:
— O meu legado deixo à porra do povo cearense!
— assisto à indignação, melancólico. Compreendo perfeitamente.
— Pagamento de poeta, Raymundo, é tapa e pontapés! Só isso,
fazer poesia aqui é isso... Um rapaz ao lado me disse que ele comprara
quase todos os exemplares de Sábado: estação de viver do
Juarez Leitão apenas para mostrar a sua foto aos passantes da
praça e provar a todos que ele não era qualquer um, não.
Tupy, um cachorro velho, chegou
apreensivo. Mário sorriu: — Dentre amigos, encontrei cachorros;
dentre cachorros, encontrei amigos. Desculpe, amiguinho, aderi à
Fome Zero, tenho nada. — lamentou, retirando dos bolsos do paletó
pedaços de guardanapos, retalhos de versos. Recordei que há poucas
semanas havia encontrado o poeta na praça. Estava mais mungangoso
que o normal. Paguei-lhe um pacote de biscoitos. Perguntou-me se
eu tinha mesmo 40 anos, pois lera o meu livro — em certa ocasião
o presenteei com um exemplar — e estava certo de que, apesar da
aparência, eu tinha pelo menos uns 80.
— Raymundo, você escreveu um livro muito bom...
é um grande literato que fala das calçadas velhas...
das calças das velhas... Ah, as calças das velhas
estão cheias de moscas! — riu. — “Cadeiras na calçada”, Mário.
Deixe de invenção! — Já tem uns 15 anos que a gente não se vê,
não é? — Que é isso, Mário, a gente se viu no ano passado,
aniversário da Padaria Espiritual, aqui mesmo na praça, lembra?
— Padaria Espiritual? Padaria Espiritual? Não, acho que não...
Eu nunca fiz parte da Padaria, eu sou do Clube dos Poetas Cearenses.
Perguntei pela “Turma do Escritório” e ele lamentou o abandono
de alguns: — Tem um poetinha de araque, um retardado,
que vez ou outra vem falar comigo. Diz que é meu discípulo.
O carinha quer ser eu, sem ter a coragem de ser eu.
Queria ver se ele aguentava viver na minha pele um dia.
Aguenta não, é frouxo! Aguentar as pauladas que eu aguento,
só sendo Mário Gomes. “Subi num pé de cana pra colher uvas.
Chegou o homem das laranjas e disse, solta as goiabas, rapaz!
”Súbito, sua face se transformou, correu e jogou o pacote de
biscoitos num moleque que lascara uma salva de palavrórios
inapropriados:— Se manque, eu sou Mário Gomes,
você é um otário! — voltando, anunciou:— Depois eu morro,
viro nome de praça ou de rua e o povo vai falar de mim, sem
lembrar que eu vivia assim, que nem as calçadas velhas do
seu livro... Despertei da lembrança quando o policial disse
para não se preocupar. Iriam soltá-lo na esquina do próximo
quarteirão. Olhei para ele. Apesar do estado debilitado, ainda
discursa com o vigor de um anarquista. O povo cearense,
naquele momento, o reconhecia e sabia que muitos de
nós passaremos, mas ele deverá ser lembrado por mais
cinqüenta ou cem anos. Mesmo ali, com toda desenvoltura,
gritava em seu “trono” improvisado: "A maioria esmagadora
da cidade me conhece... sabe quem é Mario Gomes! (...) muitos
dos que se dizem artistas, antes me procuravam e hoje fingem
que não me vêem... A verdade da vida é compreender a loucura
do outro!"Olhei mais de perto e percebi que havia
outros presos no camburão: Tostão, Chagas dos Carneiros,
Casaca de Urubu, José Levi, Tertuliano, Canoa Doida, Pilombeta,
De Rancho, Manezinho do Bispo, Burra Preta e tantos outros.
Então, tive a certeza de que o Mário não tinha sido preso, e sim,
escolhido para viver a imortalidade que só os doidos alcançam.
O relógio da Coluna da Hora gemeu a breve passagem de seu tempo.
283 anos de Fortaleza e eles ainda estão no meio de nós...

Mário Ferreira Gomes nasceu em Fortaleza em julho de 1947.
Antes de assumir-se poeta e boêmio convicto,
foi professor do antigo curso de Admissão ao Ginásio, na
escola Albaniza Sarasate. Iniciou, sem concluir, o curso
de Arte Dramática na Universidade Federal do Ceará.
No final da década de 1960 fez parte do Clube dos Poetas
Cearenses, agremiação dirigida pelo Carneiro Portela que
se reunia na Casa de Juvenal Galeno.Foi internado diversas
vezes e conta suas mirabolantes fugas dos tratamentos com
choque elétrico. Tem diversos livros publicados, dentre eles:
Lamentos do Ego, Emoção Poética, Terno de Poesia
(com Alcides Pinto e Márcio Catunda) e Uma Violenta
Orgia Universal (antologia poética).
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Meu ouvido não é penico
Quando o Maurição mandou-me o “singelo poema
Na porta do cu do dono para ser inserido na sua
coluna Umas & Outras, gargalhei a cântaros.
E realmente, quando a revista saiu, muitos leitores ou
se identificavam com o personagem (rs) ou gostaram
do tal poema. O certo é que fez o maior sucesso.
E também reclamações e xingamentos. Várias pessoas
ligaram para a redação da Singular, no caso o meu
apartamento, esculhambando com recados desaforados.
Algo assim: “Como é que o editor de uma revista,
conhecida como cultural, publica tal coisa obscena”.
Outros metiam a mão na massa: “Revistinha de merda”
...E eu, só para frescar, valorizando o diálogo,
respondia, ao telefone:
“Gente, poesia sobre cu, também é cultura”.
Segue:
NA PORTA DO CU DO DONO
(De Maciel Melo e Zé Marcolino)

Essa rôla antigamente
Vivia caçando briga
Furando pé de barriga
Doidinha pra fazer gente
Mas hoje tá diferente
No mais profundo abandono
Dormindo em eterno sono
Não quer mais saber de nada
Com a cabeça encostada
Na porta do cu do dono

Já fez muita estripulia
Firme que só bambu
Mais parecia um tatu
Fuçava depois cuspia
Reinava na putaria
O priquito era seu trono
Trepava sem sentir sono
E sem precisar de escada
Mas hoje vive enfadada
Na porta do cu do dono

Nunca mais desvirginou
Uma mata vaginosa
Há muito tempo não goza
A noite de gala passou
Vive cheia de pudor
Sonolenta e sem abono
Faz da ceroula um quimono
E da cueca uma estufa
Vive hoje a cheirar bufa
Na porta do cu do dono.

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