17 de jan. de 2010


MINHAS MEMÓRIAS (e as dos outros)

O desabafo dos cafonas


Alguém já imaginou Waldick Soriano denunciando que teve sua carreira prejudicada pela perseguição da máquina repressiva da ditadura? Ou então os compositores cearenses Dom & Ravel, estimatizados como símbolos do ufanismo militar dos anos 70 (Ame-o ou Deixe-o), são autores de músicas defendendo a reforma agrária?Odair José, preconceituosamente chapado de O Terror das Empregadas, adversário do governo ditatorial?O sambista Luiz Ayrão enganador dos generais?

São recordações atreladas àqueles tempos de chumbo grosso na vida brasileira reveladas nas 462 páginas do livro Eu não sou cachorro, não (Ed. Record) nas quais o jornalista Paulo César (também autor do livro, censurado, Roberto Carlos em Detalhes) defende a causa que nunca ninguém abordou: como os cantores e compositores considerados cafonas, dos anos 70, conviveram com o sistema de censura e de repressão policial. A produção musical brega (ou cafona) faz parte da realidade cultural brasileira, tanto quanto o tropicalismo e a bossa nova e merece ser analisada, argumenta o autor.Para o autor, eles não eram alienados ou adesista ao sistema militar da época.E tem mais: Paulo César não livra a cara de monstros sagrados da MPB, em flerte com o regime militar. Jorge Bem Jor, à época conhecido como Jorge Bem, por exemplo endossou o governo repressor do presidente Médici, empolgando multidões com País Tropical. Elis Regina recebeu cachê do Exército para cantar nos festejos do Sesquicentenário da Independência, em 1972. Ivan Lins apareceu no V Festival Internacional da Canção, em 1970, com a composição O amor é o meu país.

O livro é um caldeirão que mistura a popularidade de muitos artistas, vendedores de milhões de discos, amados pela maioria dos brasileiros. Por outro lado, demonstra um ranço contra os preferidos dos intelectuais. A publicação tem a proposta de contar um capítulo da Música Popular Brasileira, sempre relegada e , conforme documentos e entrevistas contidos no livro, aqueles artistas identificados com o povão foram censurados, tiveram discos apreendidos, apanharam da direita, enfrentaram exílio.Colocando de lado o valor estético dos intitulados cafonas, o autor elegeu a produção musical entre 1968 a 1978, período que rendeu milhões de discos, mas ao mesmo tempo trouxe problemas para autores e cantores.Com a composição Tortura de Amor, Waldick Soriano teve a sua execução pública proibida em todo território nacional, em 1974. E o próprio Waldick se defendeu: “Tortura é uma palavra poética, não me tortura tanto, meu amor...vivo torturado por ti...quer dizer: censuram a minha música, meu disco não podia ser vendido, não podia ser tocado no rádio e na televisão...acho que naquele período, no fundo, no fundo, havia autoritarismo, muito abuso de autoridade”.O campeão disparado com imbróglios com a censura foi Odair José. A gravação de Pare de Tomar a Pílula chegou ao sucesso no momento em que o governo patrocinava uma entidade chamada Bemfam (Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil) , que desenvolvia uma campanha de controle da natalidade, patrocinada e orientada por organismos americanos, entre as mulheres brasileiras de baixa renda. O governo distribuía folhetos, principalmente nas regiões mais pobres com a propaganda Tome a pílula do amor, enquanto Odair José mandava parar de tomar o anticoncepcional. O disco foi proibido de tocar nas emissoras de rádio, mas nos shows o povo exigia que ele cantasse. O cantor foi até preso por conta da música. Chacrinha entra na onda da censura, detratando o autor e sua composição, na sua coluna publicada nos jornais.A dupla Dom & Ravel, embora estigmatizada com a música Eu te amo meu Brasil, tem aspectos nunca divulgados até antes do lançamento do livro. O segundo LP da dupla, lançado em 1974, trazia algumas gravações de forte conteúdo social: O Caminhante, Conflitos de Gerações e principalmente Animais Irracionais são faixas do disco que incomodaram o governo. À época foi expedido um comunicado da Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal proibindo a execução das músicas. Nos 13 anos “comemorativos da revolução de 1964”, o sambista Luiz Ayrão gravou um samba com o título Treze Anos que dizia assim: “Treze anos eu te aturo e não aguento mais/ Não há Cristo que suporte e eu não suporto mais/ Treze anos me seguro e agora não dá mais/ Se treze é a minha sorte, vai, me deixa em paz...com o título original o samba foi proibido pela censura. Malandramente, Ayrão trocou por Divórcio, pois naquele ano, 1977, o tema estava na ordem do dia, já que o projeto do senador Nélson Carneiro acabava de ser aprovado no Congresso Nacional. A letra com um novo título passou incólume pelos desavisados primeiros censores. Até o ministro, Fernando Belfort Bethlem, soube do cochilo e repreendeu os delegados do Departamento de Polícia Federal, em Brasília. O disco foi novamente retirado das lojas.Não só algumas artistas da MPB foram perseguidos pela ditadura, mas também aqueles intérpretes populares acossados de alguma forma pela repressão.

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